19 junho 2010

memórias

Tenho memórias de uma criança na minha cabeça.
Memórias de uma criança especial , uma criança só, em particular. Não me lembro de mais nenhuma ser como aquela.
Lembro-me que se entretia bem sozinha, com qualquer coisa. Que não tinha muitos brinquedos porque os poucos que tinha fazia questão de conjugar o verbo usar até às últimas instâncias. Usar até não haver mais nada o que restar. Contam, por exemplo, que o boneco que mais teve foi o Nenuco e que todos quanto teve perdeu as roupas e arrancou-lhes a cabeça; quanto às Barbies fartava-se das roupas que vinham na caixa e ela própria as fazia: um bocado de papel higiénico era o bastante - bem dobrado e de cor dava para um mini-top ou para uma mini-saia. A cama era um tijolo comprido e fino coberto de trapos em perfeito acordo com a realidade, o guarda-vestidos uma caixa dos cereais da Chocapi aberto ao meio de forma a ter duas portas, a cómoda do quarto um fogão de brincar que a madrinha lhe havia oferecido, o berço do bebé recém-nascido uma caixinha de fósforos. Falava muito sozinha. Mas brincava muito. Ria muito junto das pessoas que se metiam com ela. Era uma criança rechonchuda, de caracóis soltos meio louros, muito conversadora (ainda que ninguém entendesse o que dizia) e bem-disposta.
Anos depois tornou-se uma mulher. Uma mulher bonita, não muito alta, sorridente, alegre, dada ao convívio e ao "pagode", como ela gostava de lhe chamar. Não se sentia realizada a nível profissional mas era admirada em tudo quanto metia mãos, ela própria, fazia questão de mencionar a sua eficácia e de como ficava estupefacta de fazer o que fazia sem que lhe fosse preciso uma chamada de atenção. Os sonhos ficaram lá atrás, parecia uma eternidade. Só o coração lhe doía, sem que se visse, pelos sonhos dos sonhos o que seriam um dia que nunca serão. Aos poucos foi-se tornando mais parecida com a sua mãe, não que isso fosse um defeito, de forma alguma. mas a consciência da mudança da sua personalidade era algo que a atormentava, via a extroversão, nata da natureza do pai, destinada para certas e determinadas situações cada vez mais distantes do seu dia-a-dia, ela... que gostava tanto de rir e rir bem, que sempre dizia como seu lema de vida "rugas sempre as iremos ter, é certo! Então que sejam causa deas coisas que nos fazem rir!!"; ela só. Ela que gostava de palavras como essência parecia que a sua se esfumava no ar como os fios finos de fumo que se soltam de uma beata abandonada. Abandonada. Era como se sentia. Nas horas em que se via entregue às quatro paredes do seu quarto sem a sua companhia de eleição, era assim que se sentia. Abandonada.

Tenho memórias de uma criança na minha cabeça.
Memórias de uma criança especial , uma criança só, em particular. Não me lembro de mais nenhuma ser como aquela. E, no entanto, é uma miragem - não uma sombra, uma miragem - daquilo que prometia ser.

3 comentários:

Mário Rodrigues disse...

O problema foi quando deixei de ver numa caixa de fósforos o chassis extraordinário de um carro de corridas nas pedras da beira do passeio...e tomei consciência de que lá dentro vinham fósforos que se bem que acendiam as velas à noite, também acendem o infernos das chamas de um incêndio devastador...A plenitude da vida temo-la unicamente no dia do nascimento...a partir daí...começamo-la a perder minuto a minuto...

Um beijo

taniah disse...

triste não é?

Mário Rodrigues disse...

Poderá não ser...

;))

Já conheces aqueda do:
"Se não tens tudo o que amas, ama tudo o que tens..."

Bjs